segunda-feira, 21 de abril de 2008

Macaco de Israel

"Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, que se resseque a minha mão direita. Apegue-se-me a língua ao paladar, se não me lembrar de ti, se não preferir eu Jerusalém à minha maior alegria."
O macaco tinha se esquecido da cidade sagrada, mas não conseguia olvidar aquele salmo. Olhava para as duas mãos peludas com uma sensação curiosa de medo, mas não de culpa. Havia abandonado a capital sagrada para engajar-se nas lutas de Paris, para enfiar-se nas trincheiras profanas da pólis da luz. "Meu filho, essa batalha nada tem a ver contigo, um macaco de Israel". "Querida mãe, a estrela de David brilha na Europa tão forte quanto brilha na Judéia; deixa-me ir, e prometo que volto". A macaca velha deixara -- as recentes conquistas da Guerra dos Seis dias tinham derretido o coração dela. E cá estava ele, nas margens do Sena afugentando pombos. Chegara tarde demais, os rebeldes já tinham sido reprimidos. Não encontrava em lugar algum os olhos brilhantes dos revoltosos. "Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém", murmurava com tom irônico, "que se resseque o meu coração, a minha alma e todo o mais, menos a minha mão, para que nela eu ainda possa usar meus anéis faustosos". Tinha se tornado um filósofo, de repente, embaixo das nuvens francesas, descansando na sombra de Notre Dame, a senhora dos cristãos. Mas sabia -- os melhores filósofos são os árabes. Seu melhor amigo, macaco companheiro de uma infância gostosa passada no Neguev, era hoje um dos sufistas mais notáveis de Teerã (seu pai tinha sido um leal servidor do império Otomano, porém, e detestava os mitos abássidas e os sussurros a respeito de Imanes Ocultos). O islamismo permitia algumas loucuras a que o cristianismo e o judaísmo já tinham se tornado imunes, percebia. Mas o racionalismo francês não era imune a nada, e tinha levado o império carolíngio àquela situação tenebrosa -- jovens trancafiados em casa enquanto os gorilas de De Gaulle marchavam livres nas ruas reurbanizadas. Não que na terra de David a coisa estivesse menos enegrecida. O gás lacrimogêneo dos judeus, na terra sagrada de Jerusalém, era a própria atmosfera, e nas pedras desgastadas do último muro (dádiva do Imperador Adriano!, que tinha poupado ao menos aquele pedaço de relíquia, maldito seja o romano) as lágrimas de gerações se misturavam há seculos. Um casal passou por ele carregando duas malas de mão -- explosivos? Seria possível que a resistência ainda estivesse articulada? Bobagem. O mundo já tinha voltado seus olhos para a crise da França, a luta, para os seculares, já tinha sido ganha. Era assim que se fazia, nos países modernos. Um macaco de Israel, aquela batalha nada tinha a ver consigo mesmo. Sua mãe não estava enganada. E a estrela de David não brilhava ali tão forte quanto na Judéia -- ela mal brilhava. Aquela Europa agressiva, que expulsara os judeus no século XV, aquele continente ingrato. "Se eu não me lembrar de ti, tu não te lembrarás de mim também", concluiu, sorrindo. Levantou-se, mergulhou no Sena e nadou contra a corrente até a nascente oculta do rio. Percorreu os lençóis freáticos misteriosos, conheceu a origem da água do mundo e, quando voltou à superfície, já estava no Mediterrâneo. Glória ao nome desconhecido! Embarcou, sem ser visto, em um barco pesqueiro no Adriático. Navegou clandestinamente até a Anatólia, onde parentes distantes o receberam e o encaminharam a Israel montado em um camelo, como um rei vitorioso. Chegou a tempo das celebrações em homenagem ao aniversário de um ano da guerra de expansão -- vitória de Israel. Já não se via árabe nenhum sorrindo nas ruas. Golã, Sinai, Jordânia. Quando entrou em casa, sua mãe o abraçou como já não esperasse vê-lo com vida. "Convertestes os francos?", perguntou-lhe? "Não, minha mãe, não converti ninguém. Mas descobri que sou apaixonado por Jerusalém e jamais me esqueci da cidade sagrada. Minhas mãos não se ressecarão, porque não há nenhuma alegria que eu prefira à ela", disse. Sorriram, os dois com lágrimas nos olhos. Rezaram 68 vezes pela glória de David e dos nomes desconhecidos de deus.

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